A crescente integração da Inteligência Artificial (IA) no cotidiano de crianças e adolescentes é uma realidade inegável e transformadora. Ferramentas que criam textos, resolvem problemas matemáticos e geram imagens em segundos tornaram-se companheiras de estudo e lazer. Se por um lado essas tecnologias oferecem um universo de possibilidades para a aprendizagem personalizada e o fomento da criatividade, por outro, acendem um alerta no campo do desenvolvimento humano: o risco de nossos jovens delegarem habilidades essenciais para as máquinas, cultivando uma perigosa dependência.
Como psicopedagoga, observo esta questão com atenção e proponho uma reflexão que vá além da dicotomia entre proibir e liberar. O nosso desafio é mediar essa relação, garantindo que a IA sirva como uma ferramenta para potencializar a inteligência humana, e não como uma substituta para ela. Este texto busca oferecer um panorama sobre os riscos e, principalmente, estratégias práticas para pais e educadores fomentarem a autonomia e o pensamento crítico em meio a essa revolução tecnológica.
A Faca de Dois Gumes: Benefícios e Riscos da IA no Desenvolvimento
É fundamental reconhecer o potencial da Inteligência Artificial. Ela pode, de fato, ser uma ferramenta valiosa para o aprendizado, adaptando-se às necessidades individuais de cada estudante, ou promover a criatividade ao permitir a materialização de ideias de formas inovadoras. Contudo, o uso passivo e desregulado apresenta riscos significativos que não podem ser ignorados.
Um dos principais perigos é o que podemos chamar de atrofia de habilidades cognitivas. O desenvolvimento de competências como a memória, a atenção sustentada, o raciocínio lógico e a capacidade de resolver problemas depende de exercício e esforço mental. Quando uma criança ou adolescente recorre sistematicamente à IA para obter respostas prontas, ela deixa de exercitar esses “músculos” cerebrais. Uma pesquisa realizada pelo Google em parceria com a Ipsos revelou que 54% dos brasileiros já utilizaram ferramentas de IA generativa em 2024, um número que supera a média global e evidencia a urgência desta discussão.
“Ao ser utilizada de modo excessivo, a IA pode trazer prejuízos justamente por ser algo de fácil acesso, prejudicando o cognitivo e o social, fazendo com que o indivíduo não precise se preocupar em pensar em solucionar os problemas ou ir mais afundo em temas que precisam de uma atenção focada maior. Isso causa uma dependência na tecnologia e aumento da procrastinação”.
Além disso, a IA generativa opera com base em probabilidades, não em veracidade, o que a torna suscetível a erros e imprecisões. Crianças e adolescentes, em fase de formação, podem acreditar fielmente no que a tecnologia lhes apresenta, sem o filtro crítico necessário para questionar a informação. Essa aceitação passiva não apenas os expõe à desinformação, mas também mina a construção de uma habilidade fundamental para o século XXI: o pensamento crítico.
Estratégias Psicopedagógicas para Cultivar a Autonomia
O antídoto para a dependência tecnológica não é a exclusão digital, mas a formação de usuários críticos, conscientes e autônomos. O objetivo é ensinar as crianças a pilotar a tecnologia, e não a serem passageiras dela. Apresento abaixo algumas estratégias fundamentais nesse processo.
Estratégia
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Descrição
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Exemplo Prático
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1. Fomentar o Pensamento Crítico
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Ensinar a analisar, interpretar e avaliar informações de maneira lógica e racional, questionando fontes e buscando evidências.
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Ao receber uma resposta de um chatbot, questione: “De onde o programa tirou essa informação? Existem outras respostas possíveis? Essa fonte é confiável?”.
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2. Promover a Metacognição
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Incentivar a criança a “pensar sobre o próprio pensamento”. Isso envolve planejar como abordar uma tarefa, monitorar a própria compreensão e avaliar o resultado final.
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Antes de um trabalho escolar, ajude a criança a estruturar os passos: “O que você já sabe sobre o tema? O que precisa descobrir? Como você pode começar? Onde a IA poderia te ajudar a complementar, e não a fazer por você?”.
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3. Estabelecer a Abordagem “Humano Primeiro”
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Orientar para que a primeira tentativa de resolver um problema ou criar algo parta sempre do esforço e conhecimento próprios. A IA deve ser uma ferramenta de consulta, verificação ou aprofundamento, não o ponto de partida.
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Em uma redação, a criança deve primeiro criar seu rascunho com suas próprias ideias. Depois, pode usar a IA para sugerir sinônimos ou verificar a gramática, comparando as sugestões com seu texto original.
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4. Dialogar e Explorar em Conjunto
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Manter uma comunicação aberta sobre o uso da tecnologia e explorar as ferramentas de IA junto com os filhos, discutindo seu funcionamento, seus limites e seus riscos, como privacidade e vieses.
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Testem juntos um aplicativo como o ChatGPT. Peçam para ele criar uma história e depois analisem: “A história é criativa? Faz sentido? Que partes nós poderíamos melhorar?”.
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5. Ensinar Sobre Plágio e Autoria
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Deixar claro o conceito de trabalho original e a importância de dar crédito às fontes. Copiar e colar um texto gerado por IA e apresentá-lo como seu é desonesto e, em muitos contextos, ilegal.
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Explique que, assim como em um livro, é preciso dizer de onde a informação veio. A IA pode ser uma fonte, mas deve ser citada como tal, e o trabalho principal deve ser da criança.
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Conclusão: Aumentar a Inteligência, Não Substituí-la
Navegar na era da Inteligência Artificial exige de pais e educadores um papel ativo de mediação. Não podemos simplesmente entregar a tecnologia nas mãos de crianças e adolescentes e esperar que eles, por si sós, desenvolvam um uso saudável e produtivo. É nosso dever equipá-los com as habilidades cognitivas e socioemocionais para que se tornem mestres da tecnologia, e não seus servos.
Ao incentivarmos o pensamento crítico, a resolução autônoma de problemas e a reflexão, estamos construindo as bases para que as futuras gerações usem a Inteligência Artificial para aumentar sua própria inteligência, expandir sua criatividade e resolver problemas complexos de maneiras que ainda nem imaginamos. O futuro não pertence à IA, mas sim aos humanos que souberem como utilizá-la com sabedoria, ética e, acima de tudo, autonomia.